CORINGA: UMA ODE A SATURNO

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CORINGA: UMA ODE A SATURNO

“O melhor ator é aquele que não tem a personalidade forte”, ouvi certa vez. A observação nasceu do diretor e ator Sylvio Zilber, e não poderia mesmo ter sido de alguém que não tenha respirado teatro ao longo de sua vida. Muito antes das artes cênicas se tornarem fruto de desejo dos corações vaidosos, representar era entregar-se para algo além de si. A verdade mais profunda do ator, afinal, é o desapego do que ele que pensa ser a sua essência. Quando o ator quer mostrar sua personalidade por de trás da máscara, ele falha. Quando ele quer fazer sua beleza ser notada a qualquer custo, mesmo nas cenas mais sujas, ele falha. É por isso que atores são de Saturno, e não do Sol como se pensa por aí. 

O Coringa vem se tornando um dos personagens mais sedutores do cinema desde a atuação de Heath Ledger. Sua aparição nas obras cinematográficas, desde então, gera expectativas tanto para o mercado quanto para os críticos. Talvez porque a construção do personagem não possa ser feita de outra forma senão por uma entrega total do ator; uma frustração para uns, ou transcendência para outros: não há meio termo. Se ser ator é manifestar Saturno, representar o Coringa é encarná-lo momentaneamente na Terra.

Saturno é o grande inimigo dos luminares. Sol e Lua representam a vida e a consciência, Saturno representa a morte e a loucura. É o último dos planetas visíveis a olhos nus do ponto de vista da Terra, sendo portanto o que menos recebe a luz e o calor do Sol. Na atribuição de regência dos signos, a Lua ficou com Câncer, o início do verão, a estação mais radiante do ano, ao passo que o Sol ficou com Leão, o ápice e consolidação da estação. Assim, Saturno edificou a sua morada nos signos opostos, Capricórnio, o início do inverno, e Aquário, seu fortalecimento. Saturno, portanto, é o extremo oposto de toda abundância, vida social, fama, fertilidade, verdade e clareza que Sol e Lua representam. Saturno é a marginalização, o abandono, a solidão e a demência. Seu júbilo se dá na casa 12, a dos manicômios, prisões, loucura, exílio e ações ocultas. 

O Coringa (2019), protagonizado por Joaquin Phoenix, é um perfeito retrato de Saturno. Desde sua aparência magérrima, faminta, contorcida e melancólica, até sua biografia marcada pela pobreza, pelo anonimato, pela internação, pelos pensamentos mórbidos e pela complexa e confusa família. Mesmo seu distúrbio neurológico tem natureza saturnina: o riso escancarado e impulsivo, marca de desequilíbrio e perturbação à ordem, por vezes um sinal de maldade. Isso é bastante perceptível em nossa cultura, por exemplo, na famosa risada da bruxa ou de alguma figura maligna, que com certeza todos nós já ouvimos em alguma história. Na Alta Idade Média, o riso foi considerado pela Igreja Católica como sinal de decadência e não-razão, ponto de vista bem resumido pelas palavras do pesquisador Georges Minois: “O pecado original é cometido, tudo se desequilibra, e o riso aparece: o diabo é responsável por isso.” Arthur Fleck (o Coringa) rompia com as expectativas sociais rindo em momentos inapropriados, inclusive quando era vítima de agressão.

A primeira cena do filme mostra Arthur na frente do espelho finalizando sua maquiagem de palhaço. Não somos, então, diretamente apresentados à verdadeira face do personagem, mas a sua “máscara”. E mais do que isso: ao reflexo de sua máscara. Afinal, aquele que se opõe ao Sol nunca se apresenta em sua forma pura. Em seguida, com seus dedos, ele distorce a expressão de seu rosto abrindo um sorriso exagerado. Arthur Fleck trabalhava como palhaço, uma figura tão saturnina quanto os bufões e bobos-da-côrte do período medieval. Dentro do microcosmo do palácio onde o Rei era o Sol, a Rainha era a Lua, Marte o Comandante, Mercúrio o Mensageiro, Vênus a Duquesa e Júpiter o Conselheiro, Saturno era o bobo-da-côrte, o único que tinha a permissão de caçoar do rei e atrapalhar o dia a dia do castelo. Saturno questiona o que foi estabelecido e abre espaço para o impensável. Neste ponto, o personagem de Phoenix age bem por mais que sua condição lhe cause sofrimento, mas aos poucos ele vai se entregando à própria insanidade e a visão distorcida dos fatos para expressar a face mais nefasta de Saturno: o sadismo, a inveja e a frustração. 

Imagem: Warner Bros

É neste ponto que a legítima insatisfação de Arthur Fleck sobre uma sociedade sem compaixão e amor ao próximo, que tira recursos dos mais pobres e invisibiliza os doentes, que escracha do fracasso alheio, converte-se num profundo egoísmo. Se ele não pode competir para ser um comediante de reconhecimento, ele decide também não colaborar com outros, mas ao invés disso, eliminá-los. O Coringa nasce com uma intenção suicida à princípio. Arthur Fleck desejava se matar durante o Talk Show que havia exposto a sua terrível apresentação de stand up num clube da cidade. Foi a única forma que pensou ser possível tornar-se inesquecível. Mas durante a entrevista, o ódio pelo mundo falou mais alto do que o ódio sobre si mesmo, e assassinou o apresentador do programa.

No decorrer de seu desenvolvimento, a cidade de Gotham vivia um grande caos social com inúmeros protestos da população mais pobre contra a elite. Os manifestantes usavam máscaras de palhaço em referência ao assassinato de três homens que trabalhavam na Bolsa de Valores pelas mãos de um suposto justiceiro vestido de palhaço, o Coringa. A verdade é que o crime não teve relação nenhuma com uma preocupação política por parte de Arthur, mas sim de uma defesa que fizera quando estava sendo agredido por aqueles homens no metrô, exceto o terceiro que estava fugindo e já não apresentava nenhum perigo, e mesmo assim foi perseguido até ser executado. O fato é que o Coringa passou a ser visto como exemplo de ameaça ao sistema que injustiçava a população da cidade, e o personagem se aproveitou da onda para ser enaltecido em seu próprio espetáculo cruel.

Na cena final, após o carro da polícia ter sido colidido por outro veículo meio aos protestos, os manifestantes retiram o Coringa de dentro dele e o colocam sobre o capô da viatura, ao que este aos poucos desperta do impacto causado pelo acidente e se levanta, sendo vangloriado pelo povo mascarado a sua volta. Marte, que representa os rebeldes, se exalta em Capricórnio, domicílio de Saturno. Saturno, por sua vez, exalta-se em Libra, domínio da Vênus. O que para Marte é guerra, para Saturno é arte. E com o sangue derramado, o Coringa abre um novo sorriso.
 
Guilherme de Carli